O ritmado padrão dos solavancos dos carris lembravam-no de que estava em viagem, embalando-o vagarosamente nos seus torpes pensamentos.
Como ela era parecida. O mesmo cabelo castanho claro, o mesmo nariz fino mas não grande, como quase todas lhe pareciam ter.
Os mesmos belos olhos castanhos com subtis tons de esverdeado escuro, profundos e fortes, daquelas cores que nos puxam para dentro delas, misteriosas, enigmáticas, cativantes.
Tudo na sua vizinha de viagem o lembrava daquela que o tinha abandonado.
Desde a linha do maxilar que delimitava o seu caracteristco queixo até à forma do seu corpo relaxado no banco, com o braço apoiado na janela suportando uma entediada cabeça.
"Fala inglês?" perguntou-lhe ele.
"Sim" respondeu-lhe surpreendida.
"Você é inacreditavelmente bela, sabia?"
A resposta foi-lhe totalmente inesperada: revirou-lhe os olhos e, com um visível desagrado, virou a cara para o mundo do outro lado da janela, ignorando-o.
"Desculpe-me não pretendia ofende-la, lembrou-me alguém conhecido apenas isso..."
"Não o conheço de lado nenhum, por isso se faz favor não me dirija palavra"
"Não a incomodarei, perdão"
Que falta de educação, pensou. Nada tinha dito de ofensivo para merecer tal género de resposta.
Estranha cultura esta, onde um elogio é recebido com mau grado e a distância entre desconhecidos parece ser um fosso intransponível.
"Talvez resquícios de uma ditadura mal curada" disse a si mesmo "uns povos lidam com o presente melhor que outros" concluiu.
Aparentemente todos os programas, anúncios e passa-palavra que lhe tinham chegado aos ouvidos eram nada mais que uma bela falácia. Até agora apenas tinha encontrado enfado e má vontade, distância e desagrado pela comunicação com um estrangeiro. "Desconhecimento da língua talvez, as pessoas não gostam de lidar com a sua ignorância."
Quando cá chegara a hospitalidade do povo que o recebia foi desde logo posta em causa: no aeroporto dificilmente percebeu como chegar à estação de comboios pois ninguém soube explicar-lhe em inglês como lá chegar. Uns quantos "desculpe não tenho tempo", uns acenos negativos e caras viradas para o lado contrário, senhores de mala na mão, fato, gravata e pouco tempo; serviu-lhe uma senhora da limpeza que, curiosamente, falava um inglês perfeito. Origem eslava, parecera-lhe, pelos traços do rosto.
Na estação de comboios uma senhora de meia idade sentava-se nas bilheteiras e, mais uma vez, era incapaz de comunicar com ele. Pior do que a ausência de diálogo, a estupidez: ao não ser compreendida repetia na sua língua nativa o que lhe parecia as mesmas palavras, mas mais alto e devagar. Perdera a paciência consigo e, apontando-lhe uma direcção, mandou-o embora. Lá descobriu uma máquina de bilhetes, felizmente ali sim havia inglês que lhe explica-se como comprar um bilhete.
Durante a espera para a continuação da sua viagem o café de mau aspecto onde comprou um típico pastel de nata e um café, recebeu mais uma vez um tratamento familiar ao que conhecia da sua pátria. Mal encarado, comportando-se como se lhe fizesse um favor, um senhor de bigode e afanado apressadamente lhe serviu o que pediu. Mão sobre o balcão e inclinado para si, esperava pelo dinheiro que lhe era devido. Reparou que após receber e guardar o dinheiro num saco não recebeu qualquer tipo de talão. Práticas de cá, pensou, maneiras diferentes de fazer as coisas. A pressa parecia ser provocada pelo programa de televisão que de momento dava, uns homens cada um no seu pequeno palanque a exaltadamente esbracejar e insultarem-se uns aos outros. Há coisas que não precisam de se perceber para compreender. Pelo cenário, era futebol.
Inesperadamente o comboio começou a travar. O barulho das rodas nos carris era ensurdecedor, o balançar do comboio ameaçador e a vibração assustadora.
Quando finalmente parou, perguntou num misto de curiosidade e surpresa com a calma dela "que aconteceu? porque parámos de repente?"
A resposta, mais pela indiferença do que pelo que significava, desarmou-o "o mais provável é que seja mais um a atirar-se para a linha".
"É normal isso acontecer?"
"O quê? matarem-se?"
"Sim"
Pelos olhos dela claramente depreendeu que, de facto, conhecia mal o país onde estava.
"Você vê noticias?" via, mas não sobre isto, sobre aqui, sobre longe. Ou pelo menos sobre o longe que não importava. É que Portugal não importa. Não tem peso no mundo. Não é noticia a não ser por algo triste ou miserável que, no entanto, não afecta substancialmente ninguém fora das suas fronteiras.
"Creio que... não sei... não estou mesmo a perceber o que se está a passar". A linguagem corporal dela não lhe dava dúvidas, a consideração por ele, que já devia ser pouca, era agora nula.
"A crise? pessoas com dívidas que não podem jamais pagar? você sabe que cá morre-se à fome certo? que se trabalha para não ter o suficiente para viver?"
"E matam-se por isso? na linha do comboio?"
Não conseguia perceber. De onde vinha o que não faltava era gente que vivia sem trabalhar, à conta do estado, verdadeiros parasitas. Desconhecia que onde estava os parasitas eram, essencialmente, quem mais tinha.
"Na linha do comboio, nas escarpas e penhascos, nos comprimidos, nos tiros, onde der e calhar. Morte é morte."
"Mas isso é uma fuga simplória a um problema que se resolve! trabalhem, lutem, arranjem formas diferentes de viver! um trabalho não chega? arranjem outro! dêem a volta à situação, sobrevivam!"
Olhava-o como se fosse um completo idiota.
"Você, sobrevive?"
"Desculpe-me?"
"Você, sobrevive? a sua vida baseia-se em sobreviver? Acorda de manhã, quando ainda não há sol, e vai sobreviver. Deita-se quando o dia se foi e, três ou quatro horas depois, volta a sobreviver. Faz isso?"
Não, não fazia. De facto, não o fazia de todo. Acordava com o sol, vivia o dia, deitava-se e descansava. Mas não quis dar o braço a torcer.
"Não, mas minha cara lutei para isso! cada um tem a vida que tem, às vezes é injusto, mas é preciso fazer por ela, dobrar os braços e aceitar o destino não é solução!"
"Você lutou? e as pessoas que em desespero fazem isto pensa que fazem o quê? sentam-se em casa à frente da televisão à espera que lhes caia o sustento do tecto? Que a sociedade mude para eles? Você tem sequer noção da barbaridade que está a dizer?"
Aparentemente não tinha, para ele parecia-lhe pouco mais do que lamentações. Fizessem o que ele dizia e certamente a vida não lhes seria tão amarga como a jovem à sua frente caracterizava. Afinal uma das coisas que lhe tinham contado sobre este povo era verdade, o Fado era desporto nacional.
"Não fale do que não sabe. Quando trabalhar doze horas e não receber o ordenado mínimo à 4 meses sinta-se no direito de dizer alguma coisa sobre a situação. Agora um moralista ignorante do que sai da sua boca, um turistazeco que se acha superior por andar no outono a passear e largar pérolas de sabedoria aos autóctones... tenha vergonha. Poupe-me à sua estupidez."
Diziam-lhe que eram educados. Que gostavam de receber. Que eram pessoas amigas de ajudar.
"Um povo simpático, vais ver. Gente porreira. Tentam sempre ajudar, mesmo que não saibam falar outra língua que a deles. Gente ignorante estás a ver, vivem lá no fim da Europa. Mas o tempo não é como cá, é quente. E a fruta, a fruta tem sabor! a comida é boa, pagas pouco e comes bem. Aquilo para férias é bom, vais gostar!" diziam-lhe antes de partir.
"Super simpáticos, as coisas são baratuchas, o calor e o mar, aquilo é bonito."
Só coisas boas que agora, vivia, não eram verdade. O tempo, sim, o tempo era agradável. A comida, enfim, ainda só tinha provado o pastel de nata; era bom sem dúvida, mas nada que justificasse uma visita. Simpatia? devia ter ficado com a pressuposta personagem suicida, porque não a encontrava em lado nenhum.
"Oiça lá menina! eu não a ofendi escusa de me falar nesses termos!"esta pacóvia atrevia-se a falar-lhe assim. Era inaceitável.
"Não ofendeu? parte do principio que sabe o que quem toma a decisão mais corajosa da sua vida sente e está errada, parte do principio que tem a solução para os males de uma realidade mais complexa e difícil do que aquela que toda a vida o rodeou, julga que é quem? que sabe o quê? Rebaixa a inteligência colectiva de quem aqui sofre e não tem oportunidade de sobreviver e crê não ter ofendido? Por fim ainda se sente tocado com as verdades?"
Claro que tinha a solução para o problema fundamental desta gente. Sucintamente, tinham de deixar de ser preguiçosos. Mãos ao trabalho, mexerem-se era o que precisavam. Toda a gente sabia que não havia outra solução senão esta; dos economistas aos políticos, dos jornais aos comentadores, no seu pais toda a gente dizia o mesmo. Seria possível eles verem a realidade e esta gente, que vivia mal e se matava por ter abusado nos gastos e diversão, serem tão cegos? Incrível, assim certamente nunca sairiam do buraco onde estavam.
Inesperadas situações mudam o Homem. A rapariga, agora sentada não sabia onde pois tinha-se ido embora, tinha-lhe cortado qualquer contacto possível depois de uma aproximação sua com lisonjeiras. Foi preciso uma ofensa (ainda que não premeditada nem consciente) para quebrar gelo e iniciar conversa.
Estranha cultura esta.
Ao fim de algumas horas o comboio recomeçou a andar. Nunca saberia ao certo o que se tinha passado, as ambulâncias que ouvira enquanto esperavam seguir caminho denunciavam que provavelmente a criatura com quem acerbamente discutira momentos antes teria razão.
Começava a duvidar da sua viagem. Saíra de casa, de perto dos amigos, família, colegas, para poder libertar-se do demónio interior que o perseguia. Não que tivesse fugido, era preciso coragem, convencia-se, para sair do conforto do conhecido e ir palmilhar (ainda que de comboio e avião) o desconhecido.
Para trás ficara uma adição à cocaina, um alcoolismo perto do incontrolável, uma ex-namorada ingrata que o traira sem justificação possivel. Refletia agora que talvez as ácidas palavras que lhe dirigiu durante meses, o modo como fora de si a tratou, provavelmente teriam contribuído. Nunca saberia bem, metade das vezes que, julgava ele, teria tido um comportamente menos aceitavel estava afogado. Grandes momentos esquecidos por si, deduzia.
Vícios caros também não ajudaram. O que começou por ser uma parte do rendimento dedicado a uns momentos efusivos e felizes passou a, como sempre acontece, tornar-se a razão da existência do dinheiro. Ela, incompreensiva, começou por criticá-lo. Criava conflitos desnecessários gritos puxões chapadas, zangas e fitas, birras inacreditáveis. Quem era ela para se armar em mãe dele? Ele era um adulto, faria o que queria, e se ela não aceitava isso podia muito bem por-se a andar, não precisava dela para nada. Um dia, pôs-se. Não sem antes, segundo ela, um momento de fraqueza. Uma necessidade extrema de compreensão, de ternura, de carinho de aceitação de bem estar de paz de calma de liberdade , de amor. De vida.
Quando percebeu que as mãos que o agarram à vida desapareciam, uma por uma, usou aquilo que à demasiado tempo tinha esquecido possuir: inteligência.
Falou, calmamente, com os pais. Explicou-lhes entre lágrimas, lamentos e culpa o que o queimava por dentro. A necessidade de mudar, completamente, tudo. Afastar-se dos que o prendiam ao inferno e procurar longe quem o levanta-se do buraco psicológico e emocional em que se tinha enfiado.
E fugiu.
Escolheu o lugar porque era barato, porque tinha pouco dinheiro, porque no aeroporto estava a fechar um voo para lá e, sem pensar, foi.
No fundo, escolheu o que tinha já escolhido. Informalmente perguntou a quem já lá tinha ido a sua experiência, e sabendo que aqui teria a bondade desinteressada que não conhecia onde estava, aventurou-se.
Mas se começava agora a perder a amarra emocional que esperava encontrar, de que servia isto? Para quê andaria ele a cansar-se, de um lado para o outro, enganando-se? Tal como todos os outros, não era aqui que se salvaria, era fechado sabe-se onde junto de outros drogados, vigiado, controlado, isolado.
Via agora campos e campos, alguns plantados alguns abandonados. De tempos a tempos passavam por uns bosques estranhos de arvores baixas, tão diferentes das altas e frondosas da sua pátria.
Se as florestas daqui fossem todas assim, eram como os homens que aqui viviam: pobres, baixas, de roupas arrancadas e rotas, todas amarrotadas. E espaçadas. Uma aqui, outra ali, sol o abundante sol entre elas. A distância intransponível era a natureza desta terra.
Ele que vinha à procura do calor humano, da simpatia e compreensão, via-se agora tão sozinho como em casa. Cruéis ironias da vida.
Numa das paragens reparou na rapariga que tinha tido a presunção de questionar as suas opiniões. Tal como todos os outros, uma simplória que preconceituosamente fizera os seus juízos de valor sobre si e sobre ela, sobre os outros e sobre tudo. Mais uma que partira do principio que ele, por ser de onde era e estar onde estava, tinha tido uma vida fácil.
"Uma vida perfeita não era? Era o que estavas a pensar? Onde sem esforço tive tudo, sem problemas. Onde não houve dor nem sacrifício, onde não houve espaço para desespero nem medo. Onde o amanhã era certo, onde era livre. Era? Era isso que pensavas? Pensavas que estes que se atiram à linha, os que desistem, esses é que são corajosos? Não... Eu! Eu é que sou corajoso! Eu que enfrento o diabo no corpo a tentar-me todo o dia, eu que me deito e sonho pesados pesadelos com a morte lenta que me infligiram! Eles que se endividaram e agora não pagam, acham eles que isso é alguma coisa? Acham que isso é alguma prisão? Um banco? Uma idade e uma falta de formação que lhes nega emprego? Um filho que chora de fome? É por isso que se matam?
Isso é liberdade. É uma vida normal que toda a gente tem, uma preocupação que a todos destrói, uma dificuldade que a todos deprime.
Prisão é nós dentro de nós mesmos. É uma cabeça funcional destruída que constantemente deseja sabotar o corpo, a vida, a existência, quem nos rodeia quem nos ama quem nos ajuda quem o nosso bem deseja.
Prisão é termos de prender, todos os dias, todos os momentos, um diabo que nos rompe o âmago para comer ferozmente o que de bom existe e depois, rindo sadicamente do rasgado e sangrado coração batendo as suas últimas convulsões lhe permite encher-se de remorsos.
Prisão sou eu.
Passou-lhe momentos depois pela mente o desconhecido suicida. Não lhe parecia agora uma saída tão descabida quanto isso. Até que ponto era mais aceitável massacrar-se até ao fim dos seus miseráveis dias, quando podia, num momento, salvar-se a si e aos outros mais desilusões, fracassos, dor.
Os carris, apesar do seu apelo naquele momento, estavam fora de questão. Sabia bem que a maioria não morre, fica inútil para o resto das suas vidas, pesos para familiares. Continuou a sua viagem de descoberta e hipotética salvação tentando ignorar esta morbidade. Viu cidades e vilas, campos e montanhas, planicies e lagos, até chegar à costa.
O mar é uma força terrivelmente atraente. Sentado num rochedo à beira do topo do Cabo, olhava à sua volta: mar e mar rodeavam o horizonte, a terra nas suas costas, o som das ondas impondo a sua presença nas rochas por baixo. Deixou-se enternecer pelo voo das gaivotas que por ali esvoaçavam, procurando comida para o dia. Simples vidas, belas.
Levantou-se, todo o continente estava nas suas costas empurrando-o para o abismo que, animadas ondas, o esperava ansiosamente. Era o fim da sua vida, iria teatralmente; pelo menos o fim da sua vida seria digno.
Como muitos, a coragem escondeu-se no momento decisivo.
Com o tempo a vergonha da cobardia substitui-se com o orgulho da sobrevivência. Recompôs a vida, aos poucos e no que pode, voltou à vida. Não regressou porém. Há sítios que são fantasmas que não é prudente acordar, e a sua pátria tornou-se o fim do mundo europeu, onde a cobardia pela vida o salvou da coragem da morte.
Wednesday, February 06, 2013
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