Saturday, March 22, 2014

Almas

Há uma alma portuguesa. Pequena, pequenina, orgulhosa e sozinha.
Uma alma que vive no ardor interior aquando da guitarra do Paredes, da voz da Amália, do Carmo, do Marceneiro. O aperto, ó meus senhores, o aperto que cá temos no orgulho pelo Eça, Pessoa, pelo Camões. Uma alma de história e estórias.
Mas é um orgulho insignificantinho; partilhado por muitos, alimentado por poucos. Uma criança de mão dada com a saudade de um império, de poder, de uma importância já esquecida. Um orgulho meus amigos, no passado e do passado, virado para trás com medo do futuro, incapaz de enfrentar o presente.
Uma alma portuguesa que se queixa, que chora sobre o que não controla, que reclama os seus direitos entre quatro paredes mas se cala ao ar livre. Temos em nós uma alma forte, corajosa, oh! invencível e omnipotente nas palavras mas que, Jesus Deus nosso Senhor nos ajude, envergonha-se nas ações.
Uma alma moralista fiquem sabendo, melhor que qualquer outra, melhor que todas as iguais a si, melhor até daquilo que se desconhece. Uma alma que diz defende e enche o peito pelo que depois, às escondidas e à mostra, corrompe.

Ah, que grande alma!

Do tamanho do país, dos seus horizontes, das suas ambições. Tão grande meninos e meninas, quanto pequena é a ignorância dos labregos e doutores desta nossa maravilhosa nação, que entre si digladiam em surdina a sua superioridade ou desnecessária existência. Gigantes, somos gigantes.
Uma alma que esquece toda a miséria em que se banha diariamente, que fecha os olhos ao seu estanque destino mal comece o circo pão e vinho das novelas. Ficção, realidade, pouco importa. Precisamos, isso sim, de nos alimentar do defeito alheio. Da culpa de todos, dos erros de todos, das falhas e poucas vergonhas de todos menos de nós próprios.

Ah Viriato, que orgulho terias!

Esta alma podre que sempre trabalha mais do que deve ou isso aparenta, que come lixo e não revolta, que deixa o filho passar fome para dar caridade ao do vizinho. Que dorme no chão e tem a mesa vazia para o carro ter gasóleo e passear na feira de vaidades. Que emigra e parte e a pulso sobrevive, impõe, existe e é reconhecido para voltar e ser prepotente. Que a bem ou  a mal, com dificuldade ou facilidade, faz o que é preciso, que se desenmerda galantemente.
Alma solarenga de cafés e imperiais em dia de semana, de tardes passadas na palheta e noites nos vícios. Que mesmo assim, destruído por dentro sempre cumpre a sua função e obrigação. Que sempre acredita na recompensa que nunca irá ter.
Ai alma alma, porque fazes isto a ti própria? porque não cresces? porque não te emancipas? porque não te fazes ouvir? porque te acomodas alma? Tens novecentos anos alma, é muito tempo, demasiado para pieguices.
Ai alma, minha querida alma, talvez seja por isso que assim és. Velha, raquítica, contrariada e senil, absurda trágica e cómica, feita de paradoxos e contra-sensos. Idosa de sabedoria, de porradas e facadas por amigos e inimigos, conhecidos e desconhecidos.
Talvez seja por isso, caríssimos e caríssimas, que ela assim é.
Talvez seja por isso que assim sempre será.
No fundo, talvez seja assim que precisamos que seja.