Saturday, December 29, 2012

Prendas

Ela, como todos, perdia os dias na eterna procrastinação dos facebooks e tweeters, sentindo a profunda culpa que sempre acompanha qualquer jovem desempregado que vê a vida passar-lhe à frente num estranho e inédito misto de desperdício provocado alheiamente e, simultaneamente, por si mesma.

Quão ridícula era, pensava para si, sempre que mais um dia chegava ao fim e nada de produtivo tinha sido conseguido. Não que não tivesse coisas para fazer, afinal, ser desempregado é um trabalho a tempo inteiro sempre lhe disseram e ela, como os outros, tinha de trabalhar para ter trabalho. E ela tentava, todos os dias, ela tentava. Acordava perto das onze, o suficiente para ser antes de almoço e não ter aquele sentimento que metade do dia já tinha sido morto num sono vazio de sonhos reais. Levantava-se e ligava o computador, ia agarrar na taça de cereais e a mescla de fibras ia lá para dentro. Diziam na televisão, desde que ela se lembra, nos anúncios, que aquela coisa sem sabor, desagradável, vazia bem à linha. E ela, normal e nada de peso a mais, preocupava-se sempre com isso, era até já coisa inconsciente sabem? uma mulher tem de cuidar de si, e lá engulfava colheradas daquela coisa meio dura meio mole enquanto o computador não se dignava a abrir. Despachada da tortura alimentar, uma maçã para alguma coisa saborosa tocar-lhe as paredes do estomago enquanto abria o facebook. E quando dava por ela, já o dia tinha passado. Nem o pijama saia há já 3 dias.

Hoje seria diferente. Iria tentar e conseguir fazer algo. Deixou a sua decisão explicita no facebook e orgulhosa foi tratar de mudar a vida! Tomou banho, vestiu-se, pôs umas cuecas confortáveis, calças de ganga por cima dos collants, t-shirt camisa malha e o casaco de que tanto gostava, vermelho, figurão lindíssimo nas cores moribundas do inverno; aconchegou o cachecol de dimensões absurdamente gigantescas e o seu gorro com orelhas. Saiu.

Passeou pelo frio, olhou pelas montras para roupas baratíssimas, coisas boas das crises do neo-liberalismo e dos pobres asiáticos escravizados. Uma mulher digna desse nome não é só superficialidade, por isso obrigou-se a visitar a livraria. Desde pequena que lia, sempre tinha gostado. Se lhe perguntassem um bom livro que tivesse lido, diria de imediato Eça de Queirós. Não gostava, mas era o que sabia ser melhor, a sua cultura pouco mais ia do que esse, e envergonhava-se de morte de confessar ter em casa, depois de lidos avidamente, toda aquela mediocridade literária sem interesse, profundidade, inteligência ou valor que, ironias da vida, vendia ao milhares e milhões devido à sua constante menção à sexualidade feminina. Pornografia mental para mulheres, ouvira uma vez um idoso crítico de literatura dizer; mentira claro, alguma vez ela leria algo tão mau! mas sim, o que lhe dava mais prazer naqueles livros eram de facto o vai não vai do sexo escrito.

As ruas enfeitadas para o natal tinham uma beleza singular. Bom, não, não tinham, mas estavam diferentes e o nosso cérebro farta-se das memórias que tem e do que recorrentemente vê, daí ser-lhe alegre as luzes amarelas, vermelhas e verdes que por todo o lado se acenderiam mal o sol abandonasse o dia. Pessoas tristes pela progressiva pobreza em que se viam mergulhadas rodeavam-na, todos numa espécie de suicídio financeiro colectivo gastando o pouco que tinham para satisfação de um consumismo que também ele se arrastava pela eminência da morte, num ambiente de inevitabilidade evitável.

Recebe uma mensagem no telemóvel (um daqueles bonitos e da moda, com um ecrã onde se toca como o seu falecido avó costumava dizer; isto antes de o fígado e estômago, bem tratado pelos anos de petiscos e vinhaças, lhe cancelarem a vida) de um antigo amigo. Antigo porque para quem pouco ou nada sai, para quem não tem dinheiro para festas e jantares, e enfim, se refugia em casa, são os únicos amigos que se têm. "Bom dia! Hoje queres ir beber um café ou assim?" estranha coincidência, lembrar-se de isto quando ela por acaso, quem diria! até tinha saído de casa. "oi! pod ser. kerx ir ond?"como é que ele estaria? será que estaria muito mudado? a última vez que o vira andava ele ainda na faculdade, a tirar gestão ou que era, uma coisa assim daquelas dos dinheiros e empresas. Devia estar bem na vida pensou! "esses é que estão bem na vida, ali, a viver à conta do trabalho dos outros. Mandam e os outros trabalham. Chulice". Nunca tinha trabalhado na vida. Pelo menos nunca tinha trabalhado a sério, daqueles trabalhos que custam, em que uma pessoa só não se vai embora porque o dinheiro, na realidade, faz mesmo falta e não vêm de outro lugar que não do suor e sangue.

Era um rapaz até bonito, este. Quer dizer, bonito... era popular. Tinha um não sei quê, um carisma, era diferente. Ela e o resto das miúdas da turminha dele, na altura em que ainda andavam na escola, falseavam-se umas às outras, traiam-se umas às outras, viborizavam-se por ele: era esse tipo de rapaz.

Confessou a si mesma naquele momento que, para ser sincera (felizmente nisto não o seria para ninguém e este pensamento era seu) ele não era bonito. Nem tinha carisma, era um idiota. Mas talvez a confiança que transbordava dele e as boas famílias de quem descendia ajudavam à beleza masculina do rapaz. Isso e ser invejada por todas as outras se conseguisse agarra-lo

Como é que estaria agora? bem que se lixe, sempre era melhor sair com alguém, a algum lado, do que estar em casa, sozinha, a entediar-se até descer aos gatos e cães na internet. "eu estou pela baixa... se quiseres combinamos algum sítio e vais lá ter, que dizes?" "okix. daki a 20min no starbucks? o do largo". Mal enviou a mensagem, ele responde-lhe. Era rápido o rapaz. "ok! lá a esperarei minha cara ;)". E atrevido. Anda atrevido, e rápido. Parece que pelo menos algumas coisas não mudaram com a idade, pensou ela. Pensou também que "espero bem que não se ponha com grandes ideias. Assim do nada, feito cabrãozinho. Ah, 'tás cá com uma sorte meu menino, deves pensar que sou uma vadia como aquelas que deves sacar sempre que sais!".

Quando chegou ao café, já ele lá estava. Sentado, calmo, parecia escrever qualquer coisa num caderno com capa de cor azul. Escrevia com uma caneta daquelas normalissimas, uma bic laranja. A julgar pela caneta, perdera as manias de grandeza. Vestia-se bem. Isto se julgarmos que bem é semelhante ao que também usamos e, por extensão do nosso próprio eu, aquele bem é o correcto e mais belo.

Pela postura mantinha também o encantador carisma que o caracterizava em adolescente. Relachado mas não abandalhado, com uma perna por cima do joelho, sapatos bonitos, uma malha preta por cima da camisa cinzenta. Sobre o braço da poltrona descansava o sobretudo daqueles que agora se usavam, compridos mas sem serem absurdamente grandes como os da idade do seu pai usavam.

"Olá! Tudo bem?" cumprimentou-o quando ao aproximar-se da sua mesa ele se apercebeu da sua presença e levantou devagar a cabeça. "Tudo óptimo! agora que finalmente aqui está a tua presença, não podia estar melhor" disse-lhe com um sorriso contido mas algo atrevido.  "O cabrão anda mesmo a ver o que consegue de mim!" pensou, enquanto respondia "estamos todos simpáticos estou a ver" sorrindo também. "já cá estavas à muito tempo?" perguntou ela sabendo que, de propósito, se tinha atrasado cerca de 20 minutos. Perdera tempo a olhar para tudo e mais alguma coisa, só para não parecer desejosa de o ver. Não que houvesse interesse algum da parte dela e quisesse mascarar alguma intenção, simplesmente habituara-se a fazer-se de difícil. "sim, desde que disse que cá chegava, mas não faz mal, estava aqui entretido, como vês. não te preocupes" e deu uma pequena risada sincera. "estás gira rapariga! já não te via há imenso tempo mas parece que ainda bem, que a surpresa assim foi bem agradável!" tinha de confessar que apesar de claramente atrevido, era agradável ouvir estas amabilidades.

Conversaram. Bastante até. O rapazolas revelou-se algo diferente do que ela pensava que encontraria. Estava a trabalhar numa empresa do pai, mas não por especial favor. Andara desempregado algum tempo como ela estava agora, nas injustiças da sociedade moderna, e portanto percebia-a bem. Estava a saber-lhe bem conversar com alguém que sem moralidades sabia o que ela estava a passar, numa palavra ele compreendia-a. Ficou a saber que trabalhara aqui e ali, umas vezes pago outras não, a história que se repetia por toda a gente que ela conhecia. Queixava-se, revoltava-se, quem a ouvia era a pessoa mais sacrificada do mundo, e isto tudo conseguindo a proeza de nunca ter feito nada de decente a troco de dinheiro, de um ordenado, de um meio de subsistência. Conhecia o dinheiro a entrar na conta através das transferências que os pais faziam para si, o que não a impedia de saber melhor que ninguém que o dinheiro devia ser usado para isto e aquilo, que a vida era para viver e que contar tostões não é uma existência digna.

Oh deuses, tanto que conversaram. Mais ela do que ele, era bom ouvinte, sabia bem a presença dele. E a vida, através das chapadas que nos dão, moldaram uma pessoa interessante. Especialmente quando pediu desculpa para ir à casa de banho e ao levantar-se deu para perceber que aquele corpo era trabalhado. Que agradável surpresa aquela companhia se revelara.

Sozinha, olhando para as pessoas que a acompanhavam na sala do café, encantou-se com a mediocridade do lugar onde vivia. Gordas a olhar para os bolos, palhaços vestidos de calças às cores, gorros negros e camisas de flanela, com óculos da moda por terem estado na moda à mais de 40 anos atrás, vaquinhas (eram umas ordinárias, ela sabia-o, estava-lhes na cara e na roupa, nos cabelos pintados de loiro esticados à maquina durante sabe deus quanto tempo e roupas apertadíssimas) tirando fotos nos telemóveis para porem no facebook, estudantes a estudar no sitio com mais barulho que poderiam encontrar, etc. Estava rodeada de um manancial de amostras de idiotice humana. Ali ficou, sem nada fazer, durante uns 4 ou 6 minutos que ele demorou a fazer o seu serviço.

Quando ele continuou com as amabilidades, ela começou a aos poucos ceder à vontade de continuar a ouvi-lo. Sabia bem, ela era livre, podia ouvir o que lhe dissessem sem culpas. Não ia conseguir nada, mas ele que tentasse, afinal de contas mulher que é mulher gosta de homens atrás. Mulher sem atenção ou é feia ou gorda, e a julgar pela quantidade de tempo à que não tinha atenção real e verdadeira, estava a caminhar para horripilante.

E foi gostando nos tempos que se seguiram. Começou a sair mais, muitas das vezes com ele, viveu um pouco. Não que gostasse dele, e química era algo que também não abundava, mas davam-se bem, ela estava sozinha, este até era honesto e sincero, sabia com o que contava ele não a magoaria muito, pelo menos de propósito, sabia-lhe bem a atenção, ele tratava-a bem "e vocês não imaginam o cavalheiro que ele é, príncipe encantado mesmo, não estou a dizer que os vossos namorados não são bons mas juro-vos que adoravam um homem como deve ser como ele".
Mais importante que isso, quando ao fim de três semanas a haver algo, quando ela já não seria aos olhos de todos os outros uma pêga, caramba o homem sabia mexer-se na cama. Mas sabia mesmo. E destes não há muitos por aí. Ou isso lhe diziam as amigas, que tinham muito mais experiência que ela (pelo menos era o que gostava de pensar, iludia-se acreditando ser mais digna assim. Coisas de criança crescida, que há a fazer?). A descoberta da intimidade entre os dois deu-se pouco depois do natal, e a modos que foi uma prenda simpática de um ao outro. Foram felizes durante aqueles momentos, e o deprimente mundo que os aguardava fora da janela deixou de se fazer notar quando os olhos se fechavam de prazer entre sorrisos cúmplices.

Foi com alguma surpresa que descobriu que tinha tudo acabado. Não que tivesse começado o que quer que seja, pelo menos oficialmente, mas ela merecia respeito. Não andava metida com mais nenhum (pelo menos não fisicamente, as conversas e insinuações ainda não são imoralidades) portanto ele também não devia andar. Havia algo entre eles, ele devia respeitar isso, devia respeitá-la, ele era dela. Ou deveria ser, porque a coisa estava bem, cada vez se conheciam melhor, não era aquele o caminho que deveria ter sido seguido! Não era, com toda a certeza, o que ela esperara. O mais desconcertante foram as razões dele.

"só podes estar a brincar comigo, tu tens noção de quem és?!" mais do que toda a gente, tinha de certeza. Vivia com ela mesma à anos, sabia bem o valor que tinha. Que era muito. Não por nenhuma razão em especial, mas ela era ela, e por isso, valia mais que as outras. A sorte que ele tinha em ela ter-lhe dado atenção, e agora ele dizia-lhe uma coisa destas? "diz-me lá que raio tens tu para se poder gostar de ti? diz! estás assim tão surpreendida porquê? és mimada, esperas tudo do mundo sem te mexer para nada, todos te devem e ninguém te paga, mesmo que nunca tenhas concretizado o que quer que seja! lamechice e lamechice, pieguice atrás de pieguice, mas eu por acaso sou teu namorado ou pai para te aturar estas merdas?", "tu respeita-me!". O cavalheiro, príncipe em cavalo branco, virou crápula. "respeito-te? o respeito conquista-se, não se ganha, por artes mágicas, só por teres mamas. Quem é que pensas que és? esse teu feitio de merda, sempre com superioridades morais e intelectuais sem saberes o que quer que seja, grunha como és, uma falhada, preguiçosa, escrava de vontades e desejos, casca de vida sem sentido, queres que respeite o quê? respeito-te a humanidade que tens por teres dois braços e duas pernas, uma cabeça que podia pensar e um coração que bate." O role de insultos não parava, metade deles ela nem os percebia mas pelo tom eram ofensivos. "Cala-te!" gritava, histérica, sem saber o que fazer nem responder nem pensar, de tão apanhada de surpresa que estava. Gritava e batia-lhe (vá.. tentava, bater não era capaz que ele agarra-lhe os pulsos). "Estás a magoar-me! larga-me!" gritava enquanto continuava a tentar bater-lhe.

Levou algum tempo até perceber que ele, apesar da crueza das palavras, tinha razão. Ela realmente não sabia nada. Nunca tinha feito nada decente. Nunca tinha inventado nada. Nunca tinha conquistado nada, nunca tinha lutado por nada, nunca tinha pensado nada por ela, alimentava-lhe o espírito opiniões e conceitos dados por outras mentes. Não era minimamente culta. Não tinha vontade própria, deixava-se guiar pelas suas vontades mais imediatas sem qualquer objectivo de vida definido a longo prazo. Vivia um dia de cada vez, na dormência do tédio deprimido.
E, confessava a si mesma, enrolada no sofá a ver séries, que realmente se considerava melhor que os outros. Lembrara-se do dia no café em que ela, de cabelo liso e vestida para impressionar, criticava mentalmente todos os que a rodeavam. As criticas ácidas que fermentaram na sua mente nesse dia aplicavam-se quase todas a ela mesma. Ela era apenas mais uma absurda no meio do teatral festival do ridículo humano.

A verdade doí-lhe. E como qualquer pessoa, queria fugir da dor.

Mudaria. Amanhã ia largar esta ausência de existência, ia fazer algo, ia procurar trabalho, diabos, ia até criar o seu trabalho! falam tanto disso na televisão, deve ser possível, tem de ser possível! Se a montanha não vem a Maomet, vai Maomet à montanha! Os seus claros defeitos, as suas falhas, iam desaparecer, e ele ia ver o que tinha perdido! Ah! ele ia ver! ia quere-la outra vez e aí, seu momento de glória eterno, ela ia mandá-lo para trás. Quem ri por último, ri tão melhor.

Amanhã.

O amanhã chegou, e com ele a tentação. Como sempre acontece com os fracos de espírito ela cedeu. As dificuldades apareceram, os planos falharam, os medos cresceram, a impotência impôs-se, os sonhos morreram.
 Não tardou muito a voltar a ser si mesma, tal como era antes daquele terno presente de natal.