Monday, May 18, 2009

O pequeno ditador

Cresceu e descobriu Júlio Verne. Aprendeu com ele a capacidade de ver mais além, de imaginar e tentar justificar o impossível, criar argumentos para o inexistente. Pelo caminho foi apanhando música clássica. Ouviu o épico. Percebeu depois a emotividade deste, e como não era exclusivo de um único género musical. Compôs. Mal, sem formação, mas com um incrível esforço auto-didacta. Percebeu que quando se aprende por si mesmo, quando se procura, as coisas marcam muito mais do que quando nos são dadas. E assim, renegou o facilitismo e quis sempre aprender sozinho. Agradecia as pistas, explorava depois por si. Foi nascendo uma personalidade nascisista e de ego maior que a sua pequena estatura. Era pequeno, os pais doaram-lhe fraca genética. Pequeno e algo feio. Não que fosse assustador, tinha até alguma piada e, quando falava, sentia-se-lhe um certo encanto; não sabia simplesmente apresentar-se, na sua educação a ausência de gosto estético seria-lhe, durante anos, martirizante.
Gostava de ler, sentia que aprendia. Evoluía na sua própria expressão escrita e falada, agradava-lhe o conseguir sobrepor a sua razão e argumentos ao de adultos supostamente mais inteligentes, sábios e conhecedores que ele próprio. Saboreou aos poucos a prepotência e gostou. Para um individuo menorizado fisicamente, a superioridade intelectual era-lhe uma fuga deliciosa.
Sabia tornar-se cada vez mais má pessoa e, no fundo, isso incomodava-o. Mas satisfazia-o. E assim dedicou-se a ser Bom. Não um bom humano, ser um excelente cumpridor de tarefas. Propor-se a concretizar algo e atingi-lo na perfeição. Foi ficando frio. Frio e distante das pessoas, não lhe interessava a mediocridade dos humanos. Sentia-se cada vez mais afastado do mundo, daquilo que sentia à sua volta. Ninguém o impressionava, ninguém tinha para admirar. Interessou-se então pela história, procurou seres de capacidades inimagináveis e feitos impossíveis, queria a todo o custo ver-se noutra pessoa. Foi assim que percebeu o que era politica e estratégia. De Alexandre o grande a César, de Gengis Khan a Hitler, de Estaline a Mao Tsé Tsung. Viu como a emoção e medo são instrumentos brutais de controlo de massas, como a indução subtil de comportamentos gera outros comportamentos que, quando controlados, fazem planos frágeis atingir uma solidez e eficácia diabólica. Quis ser um Líder. Mas era tudo menos isso. Era desconhecido, não sabia lidar com pessoas, era anti-social, Faltavam-lhe as mais elementares capacidades de socialização, era um grunho.
Observou, durante uns anos, como as pessoas se davam entre si, os padrões que seguiam, os olhares, as nuances linguísticas e físicas, o quão pequenas atitudes geram personalidades icónicas, apesar de vazias de interesse/conteúdo. Aprendeu (sempre foi rápido a aprender quando o assunto lhe interessava) a dar-se e ganhou popularidade. Afinal ser admirado não era assim tão complicado. Era até uma mescla de chavões e frases feitas ditas em momentos certos, bastava ter um timing correcto e atento. Tentou ser mais humano. Não ser Mau. Ajudar. Continuou a ler, descobriu George Orwell, aprendeu com 1984 e visionou com A quinta dos animais, compreendeu a sua aplicabilidade ao Mundo. Aprendeu oratória, retórica, filosofia, tornou-se culto. E, com a idade, os que o rodeavam foram sentido-se cada vez mais incultos e o iam venerando mais.
Continuava no entanto sem conhecer o desespero, sem saber o que intimamente governava os destinos próprios de cada um, e percebeu que para sabe-lo tinha de sofrer. E sofreu: Bebeu, Fumou, Cheirou, Chutou, Ressacou, Chorou, Mijou-se e cagou-se sem saber, sobreviveu nauseabundo. Roubou, pilhou, manipulou, mentiu, "investiu". Percebeu que as pessoas quando viciadas são apenas pequenos fantoches vivos, e percebeu assim a utilidade que estas tinham. Percebeu também que a única coisa que salva as pessoas dessa alienação de vontade própria era a sua própria inteligência e resistência, e que uma pouco abundava e a outra facilmente se debilitava. Sabia agora como controlar o Mundo.
 E teve sorte, o mundo ruiu. A ganância desmedida destruiu as fundações da humanidade, queimou os princípios, afogou os valores. O Homem era agora um bicho solto e selvagem, desesperado, à procura de um sentido e salvação. Ele sabia que era momento de agir: Enterrou a bondade e fortaleceu a filha da putice: tornou-se o estratega politico de um mundo sem regras nem ordem, tinha de ser o rei do caos.
o medo é lindo.
Todos os contactos e ligações que tinha antes foram-lhe extremamente úteis nesta sua alegre fase da vida. Todos eles tinham, de certo modo, ou favores a pagar ou admiração para seguir, planeando assim uma cruel, rápida e eficaz liquidação de toda e qualquer oposição. Repetiu a paranóia da perseguição Estalinista sem no entanto perder o controlo, viva um êxtase psicológico com a sua própria magnificência. Mas sabia não ser grande.

Ser pequeno pode ser um trauma lixado. O pequeno controlador social ganhava visibilidade, mas não crescia, e isso sempre o fez sentir-se menos que os outros. Passou a usar sapatos de sola alta. Era agora um Homem! era Grande! tinham de levantar a cabeça para se dirigir a ele, sabia no entanto ser ridículo.

Ele sabia bem o perigo de um mundo caótico, selvagem e estúpido, a sua própria sobrevivência não seria assegurada assim. Tinha de reformular o mundo, mas era ainda pequeno.
o Problema de nos tornarmos importantes, influentes, e poderosos é que os nossos inimigos vão-no sendo cada vez mais também. Ele já não mandava lutar contra pequenos gangues/ grupos e povoações, lutava contra pequenos "condados" já (o bom da decandencia do mundo é que não há países, e não havendo países, não há uma capaz governança que imponha a ordem, sendo assim o mundo de quem primeiro o subjugar). Não poderia nunca sobreviver sem uma sólida força. E, mais do que força física, precisa de controlar a mente das pessoas. Lançou assim uma inteligente manobra de criação de identidade territorial, defesa da "propriedade comum", do "que é nosso", enfim, usou velhas técnicas e tácticas. Teve sucesso: Criou uma verdadeira cidade, uma verdadeira sociedade, um exército, treinado e capaz, emocionalmente dependente da sua agora icónica figura. Era um Líder. Finalmente, olhavam-no com respeito. E o sempre necessário medo. Mas ele conseguia dar a sobrevivência aos seus subalternos, e em tempos pós-apocalípticos, a mais apenas se pede pão e água.

Controlava agora alma e coração de todos o que o rodeavam, reciclava amedrontados indivíduos num temeroso colectivo. Teve a habilidade de tornar o seu "gado" numa massa temida e, no imaginário colectivo, invencível. Foi conquistando território e território, cada vez mais amplo e vazio de intelecto. Apesar do seu receio sobre a inteligência alheia, sabia precisar de gente capaz. Teve assim de buscar os que ainda sabiam medicina, psicologia, mecânica, engenharia, arquitectura, literatura, propaganda, etc. Sentiu-se impotente com a cada vez mais parecida sociedade da qual tinha emergido, temia-a verdadeiramente. Sabia que alguém iria emergir, tal como ele mesmo tinha emergido, e ganhar o seu lugar. 

Quando se tem tudo, tememos todos, pois todos querem a nossa cabeça para no seu lugar colocar a sua.

Refugiou-se em desespero nos vícios. Não que os tivesse alguma vez abandonado, todos sabiam que o seu líder era puro de defeitos (a propaganda é de facto, algo incrível) mesmo que na realidade sempre tivesse tido o ferrão venenoso da necessidade do degredo. Cada mais mais receoso, cada vez mais assustado, cada vez mais embrenhado na sua própria destruição. Sabia bem que "aquilo" seria o seu fim. Sabia que o seu poleiro cairia não por alguém, mas por si mesmo, via-o todas as noites em sonhos, antes do agreste e suado acordar, alucinado pelo cansaço e toxicidade. Não quis gulags, preferiu a rápida execução sumária. Perdeu aos poucos o respeito do seu povo, o medo já não era controlo, era motivação. Já não governava, passava os dias perdido em seus pensamentos e música, esperava a morte. Não sorria, queria fazê-lo, rir-se da ironia que ele produzira para si próprio, mas não conseguia. A cocaína minara-lhe o sistema nervoso, não mais reagia, viva sem qualquer emoção, o cérebro pura e simplesmente não conseguia mais que sobreviver em depressão. cada vez que lhe chutavam uma dose de heroína, temia o corte que esta tinha. Mas a dependência física é uma puta: quer sempre mais e mais, e ele queria sempre mais e mais também.

Tornou-se um caco. Um nada. Soube-se responsável pela destruição dos que o viram nascer e pelo nascimento dos que o viriam destruir. Ciclo inevitável, pensou a certa altura. Obviamente estava errado, no fundo também o sabia, mas o conforto de julgar ter feito tudo o que podia era a única coisa que mantinha viva. 

Um dia, nada mais restava. Um proeminente intelectual reduzido a degradação humana. O mundo continuou, alguém tomou seu lugar, aligeirou as coisas, com o tempo, tudo voltou ao normal. Todo o espaço se reorganizou, ele não passou assim de um infeliz retorno à idade média. Apesar de recordado e imortal para a história, ninguém o recordou com saudade. Já não havia saudade. Éramos agora bichos brutos e cruéis, que sobreviviam em conjunto. 
A humanidade morreu vitima de si própria.

2 comments:

Teresinha said...

meu pequeno contador de historias traumático++

Unknown said...

é exactamente isso: "a humanidade morreu vitima de si própria."